terça-feira, abril 24, 2012

Reis da polêmica Descobertas arqueológicas trazem novas e controversas visões da Bíblia. O reino de Davi e Salomão foi um império glorioso ou um vilarejo?

por Robert Draper Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL Sentada em um banco na Cidade Velha de Jerusalém, a mulher de rosto de lua cheia, toda agasa-lhada no outono gelado, come uma maçã enquanto examina a construção que lhe trouxe fama e dissabores. Não parece bem uma construção, pois são apenas algumas paredes baixas de pedra ao lado de um antigo muro de arrimo terraceado de 20 metros de altura. Mas, como a mulher é arqueóloga e essa é a sua descoberta, seus olhos veem o que pode ser imperceptível a outros. Ela vê a posição do edifício, em uma escarpa na parte norte da Cidade Velha de onde se avista abaixo o vale de Kidron, em Jerusalém, e imagina: é um mirante ideal para observar um reino. Visualiza os carpinteiros e pedreiros fenícios que erigiram a obra no século 10 a.C. E também os babilônios que a destruíram quatro séculos depois. Acima de tudo, imagina o homem que ela supõe ter encomendado e ocupado o edifício. Seu nome era Davi. Essa, ela declarou ao mundo, é muito provavelmente a casa mencionada no Livro 2 de Samuel: "Hirão, rei de Tiro, enviou [...] carpinteiros e pedreiros, que edificaram uma casa a Davi. Reconheceu Davi que o Senhor o confirmara rei sobre Israel, e que exaltara o seu reino por amor do seu povo". O nome da mulher é Eilat Mazar. Mastigando e olhando, ela é a calma em pessoa, até que aparece um guia turístico. É um moço israelense acompanhado de um punhado de turistas que se plantam diante do banco para ver a construção. Assim que ele abre a boca, Eilat já sabe o que virá - o guia, ficamos sabendo, é seu ex-aluno de arqueologia. Traz turistas ao local e lhes diz, com toda a convicção, que aquele NÃO é o palácio de Davi e que todo o trabalho arqueológico na cidade de Davi não passa de um oportuno expediente dos israelenses de direita para expandir suas reivindicações territoriais na região e, com isso, desalojar palestinos. De repente, Eilat se levanta de chofre e vai pisando duro até o guia turístico. Passa-lhe um sabão, metralhando-o no ritmo staccato da língua hebraica. Ele, passivamente, só a olha. Os turistas fitam-na, boquiabertos, até que ela vai embora furiosa. "É preciso ser muito forte", murmura Eilat enquanto anda. "Parece que todo mundo quer destruir o que a gente faz." A arqueóloga entra no carro. "Essa tensão me deixa doente", comenta, com ar abatido. "Está encurtando a minha vida." Em nenhuma outra parte do mundo a arqueologia lembra tanto uma rixa de dois times arquirrivais. E uma das razões disso é Eilat Mazar. Quando ela anunciou em 2005 que provavelmente havia descoberto o palácio do rei Davi, foi como se fizesse veemente defesa de uma proposição da velha escola de arqueologia que está sob ataque há mais de um quarto de século: a ideia de que a descrição bíblica do império fundado por Davi e levado adiante por seu filho Salomão é historicamente exata. A contundente declaração de Eilat deu força àqueles cristãos e judeus do mundo todo para quem o Antigo Testamento pode e deve ser interpretado ao pé da letra. Seu pretenso achado tem um impacto ainda mais forte em Israel, onde a história de Davi e Salomão é entrelaçada às reivindicações históricas dos judeus à bíblica Terra de Sião. De acordo com a Bíblia, um jovem pastor chamado Davi, da tribo de Judá, mata o gigante Golias, um filisteu da tribo inimiga. Davi é ungido rei de Judá após a morte de Saul, em fins do século 11 a.C., conquista Jerusalém, une o povo de Judá às tribos israelitas dispersas no norte e funda uma dinastia real que continua com Salomão durante boa parte do século 10 a.C. Mas, embora a Bíblia diga que Davi e Salomão transformaram o reino de Israel em um império poderoso e influente que se estendia do Mediterrâneo ao rio Jordão, de Damasco a Negev, há um probleminha: os arqueólogos, depois de procurar exaustivamente por décadas, não encontraram nenhum indício confiável de que Davi ou Salomão tenham construído qualquer coisa. Foi então que Eilat tocou sua trombeta. "Ela sabia o que estava fazendo", afirma seu colega arqueólogo, o israelense David Ilan. "Entrou nessa briga decidida a causar polêmica." Ilan duvida que Eilat tenha encontrado o palácio de Davi. "Minha intuição me diz que é uma construção do século 8 ou 9", diz ele. Ou seja, erigida no mínimo 100 anos depois da morte de Salomão, em 930 a.C. Críticos vão além e questionam os motivos de Eilat. Ressaltam que suas escavações foram financiadas por duas organizações, a Fundação Cidade de Davi e o Centro Shalem, dedicadas a reivindicar direitos territoriais para Israel. E zombam porque ela usa os métodos antiquados de antepassados arqueólogos, como os do avô, que não se constrangia em trabalhar com a pá numa mão e a Bíblia na outra. A prática antes comum de usar o livro sagrado como guia arqueológico é contestada por ser um raciocínio circular, anticientífico - e quem mais se empenha contra ela é o questionador-mor da Universidade de Tel-Aviv, Israel Finkelstein, que dedicou a carreira a demolir estrondosamente hipóteses desse feitio. Ele e outros proponentes da "baixa cronologia" afirmam que o peso das evidências arqueológicas em Israel e seu entorno indica que as datas postuladas pelos estudiosos da Bíblia estão antecipadas em um século. As construções "salomônicas" escavadas por arqueólogos bíblicos ao longo de várias décadas recentes em Hazor, Gezer e Megiddo não foram erigidas no tempo de Davi e Salomão, argumenta ele; portanto, devem ter sido construídas por reis da dinastia Omride, no século 9 a.C., bem depois do reinado de Salomão. Na época do rei Davi, segundo Finkelstein, Jerusalém não era mais que um "vilarejo rural num morro", Davi era um joão-ninguém que emergiu como chefe militar pelos mesmos talentos do mexicano Pancho Villa, e sua legião de seguidores estava mais para um bando de "500 pessoas empunhando paus, berrando e cuspindo" - nada dos grandes exércitos com carros descritos no texto. "É claro que não estamos olhando para o palácio de Davi!", explode Finkelstein só de ouvir falar na descoberta de Eilat. "Tenha a santa paciência. Tudo bem, eu respeito seus esforços. Gosto dela, é uma senhora simpática. Mas essa interpretação é, como direi?, um tanto ingênua." Agora, porém, é a teoria de Finkelstein que está no paredão. Logo depois que Eilat declarou ter descoberto o palácio do rei Davi, dois outros arqueólogos revelaram achados notáveis. Trinta quilômetros a sudoeste de Jerusalém, no vale de Elah - justamente onde a Bíblia diz que o jovem pastor Davi matou Golias -, o professor Yosef Garfinkel, da Universidade Hebraica, afirma ter escavado o primeiro trecho de uma cidade judaica datada da época exata em que Davi reinou. Enquanto isso, 50 quilômetros ao sul do mar Morto, na Jordânia, um professor da Universidade da Califórnia em San Diego, Thomas Levy, passou os últimos oito anos escavando uma grande mina e fundição de cobre em Khirbat en Nahas. Segundo Levy, um dos mais importantes períodos de produção de cobre nesse sítio foi no século 10 a.C. - época em que, segundo a narrativa bíblica, os edomitas, antagonistas de Davi, ocupavam a região (estudiosos como Finkelstein, todavia, garantem que o reino de Edom surgiu apenas dois séculos depois). A própria existência de uma mina e fundição de cobre dois séculos antes do período em que o grupo de Finkelstein aponta como o do surgimento dos edomitas indicaria que havia atividades complexas bem no tempo em que Davi e Salomão reinaram. "É possível que isso tenha pertencido a Davi e Salomão", analisa Levy sobre sua descoberta. "Porque a escala da produção de metal aqui é, de fato, a de um Estado ou reino antigo." Levy e Garfinkel, cujas pesquisas são subvencionadas pela National Geographic Society, baseiam suas afirmações em uma profusão de dados científicos, entre eles fragmentos de cerâmica e datação por radiocarbono de caroços de azeitona e tâmara encontrados nos sítios. Se as evidências de suas atuais escavações se sustentarem, a posição dos peritos de outrora que apontavam a Bíblia como um relato preciso da história de Davi e Salomão pode ser confirmada. Como diz Eilat Mazar com visível satisfação: "É o fim da escola de Finkelstein". Uma rodovia movimentada, a Rota 38, cruza a estrada milenar que segue pelo vale de Elah em direção ao mar Mediterrâneo. Sob as colinas, dos dois lados da estrada, jazem as ruínas de Socó e Azeca. Segundo a Bíblia, os filisteus acamparam nesse vale, entre as duas cidades, pouco antes de seu fatídico encontro com Davi. O lendário campo de batalha hoje é tranquilo, atapetado de trigo, cevada, amendoeiras e videiras, sem falar no punhado de terebintos, uma árvore nativa (chamada de elah em hebraico), que empresta seu nome ao vale. Uma pequena ponte na Rota 38 passa sobre o arroio de Elah. Ônibus turísticos fazem uma parada estratégica nesse local para que os passageiros desçam pelo vale e possam pegar uma pedra. Ela será levada para casa e exibida aos amigos: essa rocha é do lugar em que Davi matou Golias! "Mas talvez Golias nunca tenha existido", argumenta Yosef Garfinkel em seu carro, passando pela ponte a caminho de seu sítio arqueológico, o Khirbet Qeiyafa. "A história diz que Golias vinha de uma cidade gigantesca, e de tanto ser contada, século após século, acabou que o próprio Golias virou um gigante. É uma metáfora. Os estudiosos modernos querem que a Bíblia seja exata como uma enciclopédia. Mas 3 mil anos atrás não se escrevia nenhuma história dessa maneira. Era à noite, em volta da fogueira, que se começavam narrativas como a de Davi e Golias." Sob o semblante calvo e erudito de Garfinkel e de seu delicado senso de humor - que revela alguns espinhos quando o assunto é Finkelstein - espreita um homem de inconfundível ambição. Ele ficou sabendo, por um zelador do Departamento de Antiguidades de Israel, que um muro megalítico de 3 metros de altura se erguia próximo ao arroio de Elah. E iniciou meticulosas escavações no local em 2008. Esse muro, Garfinkel descobriu, é do mesmo tipo dos encontrados nas cidades de Hazor e Gezer, no norte - uma casamata de duas paredes com uma câmara no meio - e circundava uma cidade fortificada de 2,3 hectares. Habitações privadas confinavam com os muros da cidade, uma configuração não encontrada na sociedade filistina. Depois de remover a camada superior do solo, Garfinkel encontrou moedas e outros artefatos do tempo de Alexandre, o Grande. Sob essa camada helenística, achou construções esparsas e quatro caroços de azeitona cuja datação indicou serem de aproximadamente 1000 a.C. Garfinkel também encontrou uma antiga assadeira para fazer pão pita, com centenas de ossos de boi, cabra, ovelha e peixe, mas nenhum osso de porco. Em outras palavras, judeus, e não filisteus, devem ter vivido ali. Como a equipe do arqueólogo também topou com um achado raríssimo, um caco de vasilha de cerâmica com inscrições que parecem ser em uma escrita protocananeia contendo verbos característicos do hebraico, a conclusão lhe pareceu óbvia: ali estava uma complexa sociedade judaica do século 10 a.C, do tipo que os defensores da baixa cronologia, como Finkelstein, afirmam que não existe. E como ela se chamava? Garfinkel chegou à resposta quando descobriu que a cidade fortificada não tinha um portão apenas, mas dois. É o único sítio desse tipo encontrado até hoje nos reinos de Judá e Israel. A tradução de "dois portões" para o hebraico é shaarayim, uma cidade citada três vezes na Bíblia. Uma dessas referências (1 Samuel 17:52) menciona os filisteus fugindo de Davi para Gath pelo "caminho de Saaraim". "Temos Davi e Golias e temos o sítio que encontramos: eles se encaixam", deduz Garfinkel, com segurança. "O sítio é típico da Judeia, desde os ossos de animais até os muros da cidade. Que alguém nos dê então dois argumentos para que seja filistino. Um é que Finkelstein não quer que refutemos a baixa cronologia. Ok. E o segundo argumento, qual seria?" Vejamos uma segunda razão para receber com ceticismo as conclusões de Yosef Garfinkel: ele anunciou-as depressa demais e com estardalhaço, apesar de ter apenas quatro caroços de azeitona para fundamentar sua datação, uma única inscrição bastante ambígua e somente 5% de seu sítio escavado. Em outras palavras, diz o arqueólogo David Ilan, "Yosef tem interesses - tanto ideológicos quanto pessoais. É muito inteligente e ambicioso. Finkelstein é o galo do terreiro, e os frangotes acham que ele tem o monopólio da arqueologia bíblica. Por isso, querem destroná-lo". Melhor ainda, da perspectiva de outras partes interessadas: quando Finkelstein deixar o trono, o rei Davi voltará a ocupá-lo. Há três milênios o rei Davi persiste, onipresente nas artes, no folclore, nas igrejas e nos homônimos dos registros censitários. Para os muçulmanos, ele é Daoud, o venerado imperador e servo de Alá. Para os cristãos, é o ancestral natural e espiritual de Jesus que, por intermédio dele, herdou o manto messiânico. Para os judeus, é simplesmente o pai de Israel, o rei pastor ungido por Deus, e eles são seus descendentes e o Povo Eleito de Deus. Que ele possa ter sido algo menos que isso, ou apenas um mito, é impensável para muita gente. "Nossa ideia de que somos uma das mais antigas nações do mundo, uma influência fundamental no pensamento da civilização, vem do fato de termos escrito o livro dos livros, a Bíblia", diz Daniel Polisar, presidente do Centro Shalem, o instituto de pesquisa israelense que ajudou a financiar as escavações de Eilat Mazar. "Se tirarmos Davi e seu reino, teremos um livro diferente. A narrativa não será mais histórica, será uma mera obra de ficção. Com isso, pode-se concluir que o resto da Bíblia terá sido apenas um esforço propagandístico para criar algo que nunca existiu. E não sendo possível encontrar evidências é porque provavelmente não aconteceu. Daí a importância colossal do que está em jogo." Os livros do Antigo Testamento que narram a história de Davi e Salomão são escrituras redigidas provavelmente uns 300 anos depois do fato e por autores não muito objetivos. Não existe nenhum texto da própria época para validar o que está escrito neles. Desde o nascimento da arqueologia bíblica, estudiosos se empenham em vão para confirmar que realmente existiram personagens icônicos, como Abraão e um Moisés, ou eventos importantes, como o Êxodo e a tomada de Jericó. Ao mesmo tempo, diz Amihai Mazar, primo de Eilat e um dos mais respeitados arqueólogos de Israel, "quase todos concordam que a Bíblia é um texto antigo relacionado à história deste país durante a Idade do Ferro. Pode ser examinado criticamente, como fazem muitos estudiosos. Apenas não se pode desconsiderar o texto. Ele tem de ser, sim, levado em conta". No entanto, Mazar acrescenta, "não devemos tentar provar que o texto é verdadeiro ao pé da letra". Multidões de arqueólogos dedicam a vida justamente a esse objetivo, a começar pelo controverso americano William Albright, o pioneiro do tema. Entre os apadrinhados de Albright está o titã militar, político e acadêmico Yigael Yadin. Para Yadin e seus contemporâneos, a Bíblia é incontestável. Por isso, quando descobriu os portões da cidade bíblica de Hazor em fins dos anos 1950, Yadin fez uma coisa inaceitável para os procedimentos da arqueologia atual: como a datação por carbono não estava disponível, ele usou a Bíblia, juntamente com a estratigrafia, para datar a cerâmica encontrada portões adentro. Atribuiu esses portões ao celebrado império de Salomão, do século 10 a.C., porque assim está dito no Primeiro Livro dos Reis. O problema em usar como base esse capítulo específico da Bíblia é que ele foi adicionado bem depois da morte de Salomão, em 930 a.C., quando Israel se dividira em duas partes: Judá, no sul, e Israel, no norte. "Gezer era a cidade mais meridional do reino do norte, Israel, enquanto Hazor ficava na parte mais setentrional do reino e Megiddo era um eixo econômico no centro", diz a arqueóloga Norma Franklin, da Universidade de Tel-Aviv. "Por isso, seria importante para as pessoas que escreveram essa história reivindicar o direito a todo esse território. Para Yadin, a Bíblia disse, e ponto final. Três portões - têm de ser todos de Salomão." Hoje muitos estudiosos (inclusive Norma e seu colega Finkelstein) duvidam que todos os três portões sejam salomônicos, enquanto outros (Amihai Mazar, por exemplo) acham que isso é possível. Mas todos rejeitam o raciocínio circular de Yadin, que no começo dos anos 1980 contribuiu para uma reação de "minimalismo bíblico", encabeçada por acadêmicos da Universidade de Copenhague. Para os minimalistas, Davi e Salomão foram simplesmente personagens fictícios. A credibilidade dessa posição foi solapada em 1993, quando uma equipe de escavação no sítio de Tel Dan, no norte de Israel, descobriu uma estela de basalto negro com a inscrição "Casa de Davi". A existência de Salomão, porém, continua carente de comprovação. Sem outras evidências, ficamos apenas com o insípido mundo bíblico do século 10 a.C. proposto por Finkelstein em um artigo de 1996. Não um reino único repleto de construções monumentais, mas uma paisagem agreste abrigando potências díspares em lento crescimento: filisteus no sul, moabitas no leste, israelitas no norte, arameus ainda mais ao norte e, sim, talvez um grupo judaico insurgente liderado por um jovem pastor em uma Jerusalém não tão deslumbrante como imaginamos. Essa interpretação exaspera israelenses para quem a capital de Davi é o alicerce de seu povo. Muitas das escavações em Jerusalém têm financiamento da Fundação Cidade de Davi, cujo diretor de recursos internacionais, Doron Spielman, admite: "Quando angariamos fundos para uma escavação, o que nos inspira é descobrir a Bíblia - e isso está indelevelmente ligado à soberania de Israel". Como seria de esperar, esse objetivo desagrada uma parcela dos residentes de Jerusalém: os palestinos. Muitas escavações são feitas na parte oriental da cidade, que suas famílias ocupam há gerações, mas ainda assim correm o risco de ser desalojadas se esses projetos levarem à instalação de colônias israelenses. Da perspectiva dos palestinos, tanta ânsia por evidências arqueológicas que justifiquem um sentimento de pertencer a um lugar não faz sentido. É mais uma diferença cultural entre os povos, como argumenta o professor Hani Nur el-Din, arqueólogo e residente na parte oriental de Jerusalém. "Quando vejo mulheres palestinas fazendo a tradicional cerâmica do começo da Idade do Bronze, quando sinto o cheiro de pão de taboon, assado conforme a mesma tradição do quarto ou quinto milênio antes de Cristo, penso: isso é que é DNA cultural. Na Palestina não existe documento escrito nem historicismo e, no entanto, tudo é história", diz. A maioria dos pesquisadores israelenses preferiria que seu trabalho não fosse usado como alavanca política. Mas é assim que agem as nações jovens. Como observa o professor de arqueologia Avraham Faust, da Universidade de Bar-Ilan, "os noruegueses basearam-se em sítios vikings para criar uma identidade que os distinguisse de seus conquistadores suecos e dinamarqueses. Zimbábue tem o nome de um sítio arqueológico. A arqueologia é uma ferramenta bastante conveniente para criar identidades nacionais". Nesse aspecto, Israel difere de outros países. Sua identidade nacional nasceu muito antes de qualquer escavação. O que vier a ser descoberto só poderá confirmar sua identidade - ou não. "Isso aqui era um inferno", brinca Tom Levy em uma vala aberta cheia de escória preta. Ao redor do local em que ele está com seus alunos, espraia-se um sítio de 10 hectares onde se produzia cobre. Ao lado, um vasto complexo fortificado que inclui ruínas de casas da guarda de 3 mil anos atrás. Ao que parece, as sentinelas viviam quase em cima da fundição para vigiar uma força de trabalho relutante. "Para uma produção industrial dessa escala, é preciso ter um sistema de abastecimento regular de água e alimentos", prossegue Levy. "Não tenho como provar, mas, na minha opinião, as únicas pessoas que trabalhariam num lugar tão insuportável seriam os escravos - ou então os meus alunos. O que interessa é que simples sociedades tribais não poderiam fazer algo assim." Levy, um antropólogo, desembarcou no sul da Jordânia em 1997 para investigar o papel da metalurgia na evolução social. A baixada do distrito de Faynan, onde as cintilações verde-azuladas da malaquita podem ser vistas de longe, era um lugar óbvio para estudar. Também foi ali que, em 1940, o rabino e arqueólogo americano Nelson Glueck proclamou, impávido, ter descoberto as minas edomitas controladas pelo rei Salomão. Depois disso, escavadores britânicos acreditaram ter encontrado evidências de que Glueck errou por três séculos e que Edom, na verdade, datava do século 7 a.C. Mas, quando Levy começou a escavar o sítio conhecido como Khirbat en Nahas (em árabe, "ruínas de cobre"), as amostras que enviou a Oxford para datação por radiocarbono confirmaram que Glueck estava no caminho certo: era um sítio de produção de cobre do século 10 a.C. E também "a fonte de cobre mais próxima de Jerusalém", acrescenta Levy. A equipe chefiada por Levy e seu colega jordaniano Mohammad Najjar descobriu uma entrada, com quatro câmaras, semelhante às encontradas em sítios israelenses que podem ser do século 10 a.C. A alguns quilômetros das minas, eles escavaram um cemitério de mais de 3,5 mil sepulturas datado do mesmo período. Ali jazem, talvez, os restos mortais de nômades da montanha que viveram na Idade do Ferro e são mencionados em fontes egípcias antigas como Shasu. Levy supõe que eles podem ter sido "acuados e forçados a trabalhar nas minas em determinados períodos". Aparentemente, grande parte do trabalho nas minas cessou em fins do século 9 a.C., e a chamada "camada de interrupção" descoberta pelos alunos de Levy pode explicar por quê. Eles encontraram nessa camada 22 caroços de tâmara e os dataram do século 10 a.C., juntamente com artefatos egípcios como um amuleto de cabeça de leão e um escaravelho, ambos do tempo do faraó Shoshenq I. A invasão da região por esse monarca pouco depois da morte de Salomão é mencionada no Antigo Testamento e no templo de Amon, em Karnak, no Egito. "Acredito que Shoshenq interrompeu a produção de metal aqui no fim do século 10", diz Levy. "Os egípcios do Terceiro Período Intermediário não eram numerosos o bastante para instalar uma força ocupante, e é por isso que não vemos formas de pão egípcias e outros artefatos de sua cultura neste sítio. Mas eles puderam organizar algumas campanhas militares poderosas, fortes o bastante para abalar esses pequenos reinos e garantir que não constituíssem ameaça." O "inferno" que Levy escavou em Khirbat en Nahas pode vir a ser um inferno para a escola da baixa cronologia de Finkelstein. As minas de cobre de Levy talvez não sejam tão sensacionais quanto o palácio do rei Davi ou o mirante com vista para a batalha entre Davi e Golias. Mas as escavações de Levy abrangem mais tempo e área que as de Eilat Mazar e Yosef Garfinkel, e fazem uso bem mais amplo da análise por radiocarbono para determinar a idade das camadas estatigráficas de seu sítio. "Todos os pesquisadores que estudaram Edom nas últimas duas gerações afirmam que ele não existiu como Estado antes do século 8 a.C.", diz Amihai Mazar. "Mas as datações por radiocarbono que Levy obteve contam a própria história. E essa história se relaciona aos séculos 10 a.C. e 9 a.C., e ninguém pode afirmar que ela está errada." No entanto, é justamente isso que fazem os críticos de Levy. Alguns consideram suas primeiras 46 datações insuficientes para reordenar toda uma cronologia para Edom. Para sua segunda rodada de análises por carbono 14, Levy duplicou o número de amostras e selecionou meticulosamente carvão de arbustos com anéis de crescimento externos comprováveis. Apesar do alto custo da análise por carbono 14 - mais de 500 dólares por um único caroço de azeitona -, a técnica não é infalível. "O carbono 14 não ajuda a decidir toda essa controvérsia", prossegue Eilat Mazar. Existe uma margem de erro de aproximadamente 40 anos. Temos diversos laboratórios apresentando diferentes interpretações. Temos debates a toda hora sobre a questão do carbono 14." De fato, Finkelstein e Amihai Mazar andam às turras por causa da datação de um único estrato em Tel Rehov, uma cidade da Idade do Ferro e Bronze logo a oeste do rio Jordão. Mazar afirma que o estrato pode ser salomônico. Finkelstein diz que ele é posterior, do tempo da dinastia Omride, cujo nome provém de Omri, o pai de Ahab. A diferença entre as duas eras é de aproximadamente 40 anos. "Muitas datas obtidas por radiocarbono desse período abrangem exatamente a faixa que está em debate", emenda Amihai Mazar com um sorriso amargo. "Nem antes nem depois. Vem sendo assim há 15 anos." "Com o radiocarbono, é possível encontrar evidências de que Davi foi um aldeão na Noruega no século 6 d.C.!", desafia Israel Finkelstein, exagerando, como de costume, para se fazer entender. "Falando sério: gosto de ler tudo o que Tom escreve sobre Khirbat en Nahas. Ele me dá muitas ideias. Eu mesmo nunca escavaria em um lugar assim, é quente demais! Para mim, arqueo-logia tem de ser prazerosa. Venha a Megiddo - vivemos em uma pensão com ar-condicionado ao lado de uma deliciosa piscina." Ainda assim, as teorias de Finkelstein se encaixam em um interessante caminho do meio entre os literalistas e os minimalistas bíblicos. "Pense na Bíblia como em um sítio arqueológico estratificado", diz ele. "Parte foi escrita no oitavo século antes de Cristo, parte no sétimo e assim por diante até o segundo século. Portanto, 600 anos de compilações. Isso não significa que a história não seja muito antiga. Mas a realidade apresentada na narrativa é posterior. Davi, por exemplo, é uma figura histórica. Ele realmente viveu no século 10 a.C. Aceito as descrições de Davi como uma espécie de líder de grupo insurgente, agitadores que viviam às margens da sociedade. Mas não a cidade de ouro de Jerusalém, não a descrição de um grande império no tempo de Salomão. Quando os autores do texto descrevem isso, têm nos olhos a realidade da própria época, o Império Assírio." "Agora, Salomão", continua ele com um suspiro, "acho que, de certa forma, destruí Salomão. Sinto muito! Mas pegue Salomão você também, analise sua figura, sua presença histórica. Pense na suntuosa visita da rainha de Sabá - uma rainha da Arábia vem conhecê-lo, trazendo os mais variados artigos exóticos a Jerusalém. Essa é uma história impensável antes de 732 a.C., quando teve início o comércio árabe sob o domínio assírio. Pegue a história de Salomão como o grande preparador de cavalos, carros, exércitos numerosos. Você verá que o mundo por trás de Salomão é o mundo do século assírio." Sobre a mina fortificada de Thomas Levy, Finkelstein dispara: "Não engulo essa de que ela é do século 10 a.C. Impossível que pessoas tenham vivido naquele local durante a produção. O fogo, a fumaça tóxica, de jeito nenhum! Em vez disso, pense na fortaleza de En Hazeva, do nosso lado do rio Jordão, construída pelos assírios na estrada principal para Edom. Vejo a construção de Tom como uma fortaleza assíria do século 8, paralela à outra. Aliás, ao fim e ao cabo, o sítio dele é marginal. Não é nenhuma cidade estratificada com muitas eras, como as antigas Megiddo e Tel Rehov. Pegar um monte de escória e fazer dele um centro de discussão de história bíblica - não dá, isso eu rejeito totalmente!" Com mais veneno, Finkelstein zomba das descobertas de Garfinkel em Khirbet Qeiyafa: "Você nunca vai me pegar dizendo ‘achei um caroço de azeitona num estrato em Megiddo, e esse caroço - contrariando centenas de outras datações por carbono 14 - vai decidir o destino da civilização ocidental’". Ele para de falar de repente e solta uma risada sarcástica. E a ausência de ossos de porco, sugerindo que o sítio é judeu? "Um dado, mas não conclusivo." E a inscrição rara encontrada no sítio? "Provavelmente da cidade filistina de Gath, não do reino de Judá." A ironia é que o enfant terrible da arqueologia hoje é a corrente dominante, um Golias rechaçando os ataques dos frangotes a sua ordem cronológica. A hipótese de que uma sociedade complexa do século 10 a.C. possa ter existido nos dois lados do rio Jordão pôs na defensiva a posição de Israel Finkelstein sobre a era de Davi e Salomão. Seus muitos artigos de réplica e seu tom sarcástico refletem essa defensiva, e com argumentos que, não apenas para seus desafetos, muitas vezes parecem apelativos. Ainda assim, mesmo que Yosef Garfinkel prove que a tribo de Judá de Davi residiu na fortaleza de Saaraim, Eilat Mazat documente que o rei Davi mandou erigir um suntuoso palácio em Jerusalém e Tom Levy demonstre que o rei Salomão ordenou a exploração de minas de cobre em Edom, tudo isso não confirma nenhuma gloriosa dinastia bíblica. De certa maneira, a polêmica de fundo bíblico segue aberta. Quanto mais será preciso escavar para decidir o debate? Muitos arqueólogos se perguntam se é sensata essa corrida obsessiva para comprovar a narrativa bíblica. Um deles, Raphael Greel em textos ou em noções preconcebidas da história. Dar uma visão alternativa do passado: as relações entre ricos e pobrenberg, da Universidade de Tel-Aviv, declara sem rodeios: "Isso é ruim para a arqueologia. Devemos contribuir com um ponto de vista que não esteja disponíves, entre homens e mulheres. Em outras palavras, devemos buscar a reconstrução de uma época, algo mais rico do que apenas validar a Bíblia". Mas será que Davi, com todo seu poder metafórico, deixará de ter importância se seus feitos e império acabarem sendo vistos como obras de ficção? Quando argumento com Finkelstein que pessoas no mundo inteiro creem na grandeza de Davi, fico surpreso com a resposta. "Veja bem, quando faço um estudo, preciso distinguir entre o Davi da cultura e o Davi histórico. Davi é extremamente importante para minha identidade cultural. Do mesmo modo, posso celebrar o Êxodo sem considerá-lo um evento puramente histórico. Davi, para mim, é o homem refletido no rei Ezequias, que reinou em uma época posterior; o Davi refletido no rei Josias, também de época posterior; o Davi de Zacarias nas profecias escatológicas em que Jerusalém é incendiada mas ele sobrevive; o Davi que é a ligação com o nascimento do cristianismo. Nesse sentido, digo com segurança: Davi é tudo. Se quiser que eu simplifique, direi que sinto orgulho pelo fato de esse joão-ninguém ter se tornado o centro da tradição ocidental." Finkelstein, o homem que, apesar de tanta admiração, destronou Davi, respira fundo e conclui: "Por isso, para mim, Davi não é nenhuma placa na parede nem mesmo mero líder de um bando do século 10 a.C. Ele é bem mais que isso".