quarta-feira, agosto 08, 2012

O fantasma da bomba

por Richard Rhodes Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL
Teste de uma bomba atômica em 1946, detonada pelos Estados Unidos no atol Bikini, no Pacífico Sessenta anos atrás, em uma noite tempestuosa de 1945, o físico americano Robert Oppenheimer subiu ao palco de uma sala de cinema na cidade secreta de Los Alamos, Novo México. Magro e compenetrado, ele estava prestes a dirigir-se a centenas de cientistas – homens e mulheres que, sob sua direção, haviam construído as primeiras bombas atômicas. Detonadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, as bombas haviam acabado de pôr fim à mais destrutiva guerra da história – e mudaram para sempre a feição das guerras. O mundo logo iria se dar conta de algo que eles próprios já sabiam, alertou Oppenheimer: uma vez dominado o processo, a fabricação de armas nucleares era algo surpreendentemente barato e fácil. Não demoraria para que outros países também começassem a produzi-las. E, segundo ele, o poder de destruição das bombas só iria aumentar. A despeito dessas previsões perturbadoras, o físico entrevia benefícios inegáveis, considerando as armas nucleares “não apenas uma ameaça mas também uma grande esperança”. O que Oppenheimer queria dizer com isso? O perigo era óbvio: Hiroshima e Nagasaki estavam em ruínas, e dezenas de milhares de pessoas haviam sido mortas e feridas. A “grande esperança” que tais armas poderiam trazer era algo mais difícil de imaginar, mesmo num momento de vitória. Seis décadas depois, continua sendo assim. Hoje, oito países reconhecem dispor de arsenais nucleares, ao passo que 20 outros possuem tecnologia e matéria-prima para fabricar bombas no prazo de um ano, caso decidam fazê-lo. Mas as nações são apenas uma parte da história. O colapso da União Soviética colocou enorme variedade de armas e materiais nucleares sob o risco de ser roubada e vendida clandestinamente a grupos terroristas ou redes criminosas. Conhecimentos técnicos também estão em demanda. Estima-se que o “pai” da bomba paquistanesa, Abdul Qadeer Khan, tenha transferido técnicas e projetos de fabricação de bombas para Líbia, Coréia do Norte e Irã. Sua equipe pode ter revelado segredos a outros países. Desde os anos 1990, Osama bin Laden e seus seguidores sonham em obter dispositivos nucleares para realizar ataques. Ninguém sabe se os terroristas estão prestes a conseguir uma “bomba suja” de radiação ou até mesmo uma bomba atômica. A esperança entrevista por Oppenheimer surgiu de suas discussões com um brilhante físico dinamarquês, Niels Bohr, que fugiu de seu país quando este foi ocupado pelos nazistas e chegou a Los Alamos no fim de 1943. A disseminação da tecnologia de construção das armas nucleares, Bohr argumentou com Oppenheimer, acabaria por tornar esse tipo de arma uma ameaça para toda a humanidade. Ambos achavam que, quando as nações por fim reconhecessem a magnitude dessa ameaça, o mundo todo iria se unir, como nunca antes havia ocorrido, movido pela necessidade de garantir a própria sobrevivência. Ao realizar tais acordos, as nações acabariam reduzindo o perigo e a chance de um conflito. Nas décadas seguintes, enquanto muitos países se empenhavam em conseguir a bomba, a visão de um mundo aberto e mais seguro deve ter parecido de uma ingenuidade assombrosa. O sonho de Bohr e Oppenheimer, no entanto, começou a tomar forma na década de 1960, quando, após um aterrorizante episódio em que quase estalou um conflito nuclear, durante a crise dos mísseis em Cuba, os Estados Unidos e a União Soviética começaram a afastar-se da beira do abismo. Outros países fizeram o mesmo e, assim, em 1968 foi assinado o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Como compensação por desistirem de formar um arsenal nuclear, os países desprovidos de bombas atômicas que firmaram o TNP (hoje são 183, além das cinco principais potências nucleares) receberam a garantia de que as grandes potências promoveriam o desarmamento, não iriam transferir armas atômicas para nações desnuclearizadas e partilhariam a tecnologia ao uso civil da energia nuclear. Mais tarde, tratados proibindo os testes de armas nucleares ampliariam ainda mais tais restrições. A despeito de suas limitações, esses acordos conseguiram de fato afastar a ameaça de um conflito nuclear nas décadas de 1970 e 80. E também confirmaram o fato de que as nações nem sempre passam a fabricar bombas assim que dominam a tecnologia para tanto. A formação de um arsenal nuclear é uma decisão política, impulsionada sobretudo pela preocupação com a segurança nacional, e muitas vezes tais preocupações podem ser mantidas sob controle. Mas aí vieram os acontecimentos de 1991, quando um terremoto geopolítico – a derrocada da União Soviética – abalou a arquitetura dos acordos. O que havia sido uma potência nuclear unificada, a União Soviética, fragmentou-se em vários países com arsenais nucleares. Todas as bombas de pequeno alcance foram devolvidas à Rússia em 1992, mas três nações recém-independentes – Belarus, Ucrânia e Cazaquistão – mantiveram milhares de ogivas para mísseis balísticos intercontinentais (MBICs). Pressionados pelos Estados Unidos e por outros países, Belarus e Cazaquistão logo concordaram em devolver seus arsenais à Rússia. “Nós tínhamos 81 plataformas móveis de mísseis, o suficiente para devastar a Europa e os Estados Unidos”, contou-me Stanislav Shushkevich, o primeiro chefe-de-Estado de Belarus. “Mas de quem precisávamos nos defender? Quanto mais cedo elas fossem retiradas do país, melhor para nós.” Na Ucrânia, as coisas foram diferentes. A fim de desestimular uma eventual agressão russa e obter garantias de segurança e recursos financeiros do Ocidente, os ucranianos aferraram-se às 1 240 ogivas nucleares estratégicas armazenadas em seu território. Sob pressão da comunidade internacional, porém, em 1993 a Ucrânia concordou em devolver as armas à Rússia e assinar o TNP. Hoje, só a Rússia possui armas nucleares. Pela maioria dos critérios, o mundo é agora mais seguro do que durante a Guerra Fria. Após vários acordos para o controle das armas, os Estados Unidos e a Rússia desativaram milhares de bombas de pequeno e de longo alcance. O arsenal nuclear americano conta hoje com 10 mil ogivas nucleares, e o russo, com cerca de 16 mil – durante a Guerra Fria, eram 32 mil e 45 mil, respectivamente. O tratado de Moscou, assinado pelos presidentes George W. Bush e Vladimir Putin em maio de 2002, restringe cada um dos dois países a não mais do que 2,2 mil ogivas estratégicas até o fim de 2012. A França e a Grã-Bretanha também reduziram seus arsenais; a China está modernizando suas armas, mas reforçou o controle sobre as exportações nucleares, após ter fornecido ao Paquistão os projetos e materiais físseis que este país necessitava para construir sua bomba. Os dados sobre o formidável arsenal nuclear de Israel ainda são mantidos sob sigilo. Há pouco, a Líbia encerrou seu programa nuclear sob pressão de países europeus e dos Estados Unidos. Em etapa mais avançada, o programa iraquiano foi desmantelado pelos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) nos anos subseqüentes à Guerra do Golfo. A Índia e o Paquistão confirmaram sua condição de potências nucleares, realizando testes subterrâneos em maio de 1998, mas nenhum dos países acumulou mais do que 100 bombas, e sua recente escaramuça nuclear parece ter estimulado uma atitude de cautela. Essas são as boas notícias. As notícias preocupantes referem-se, primeiro, a duas nações: a Coréia do Norte, que talvez possua um pequeno arsenal nuclear, e o Irã, do qual se suspeita que esteja empenhado em produzir armas atômicas. Os EUA consideraram ir à guerra contra a Coréia do Norte em 1993, quando os norte-coreanos, que supostamente já possuíam uma ou duas bombas, ameaçaram retirar-se do TNP e pareciam dispostos a extrair mais plutônio com fins militares por meio do reprocessamento de combustível nuclear usado. As negociações levaram a uma conciliação: os norte-coreanos desativaram seu reator e permitiram que as varetas de combustível fossem examinadas pela Aiea, em troca da promessa de dois outros reatores nucleares, de carregamentos americanos de petróleo para a geração de energia e de uma melhoria nas relações com os EUA. Esse acordo vigorou até 2002, quando o governo Bush acusou o regime norte-coreano de se empenhar sigilosamente na produção de urânio enriquecido para fins militares. Com isso, os Estados Unidos interromperam o vital fornecimento de petróleo e denunciaram o acordo de 1994. Como retaliação, a Coréia do Norte expulsou os inspetores da Aiea, removeu as varetas de combustível de seu local de armazenamento e afirmou que daria início a seu reprocessamento, visando a extração de plutônio. Este seria suficiente para a fabricação de quatro a seis bombas atômicas. Desde então, os norte-coreanos alegam contar com um pequeno arsenal nuclear. Mas eles bem sabem que, se lançarem um ataque nuclear contra qualquer país vizinho, ou contra os Estados Unidos, a reação seria devastadora. “Não estamos em condições de chantagear os Estados Unidos, a única superpotência”, afirmou uma autoridade norte-coreana a uma delegação de congressistas americanos que visitou Pyongyang em junho de 2003. “Nosso objetivo ao obter uma força dissuasória está vinculado à guerra no Iraque, e às declarações feitas pelos falcões do governo americano. Se não tivermos uma força nuclear dissuasória, não poderemos nos defender.” O Irã é um caso ainda mais complexo. Durante décadas, o país investiu sigilosamente em um programa para o enriquecimento de urânio por meio de centrífugas, violando sua obrigação, diante da Aiea, de manter este órgão informado de todas as suas atividades nucleares. Ao serem confrontados, os iranianos alegaram que estavam desenvolvendo a capacidade de dominar o ciclo completo do combustível nuclear em função de um planejado programa nuclear para a geração de eletricidade. Como as centrífugas podem produzir urânio enriquecido para fins militares, assim como urânio menos enriquecido para reatores civis, e todo o projeto era mantido sob sigilo, isso despertou a desconfiança da Aiea. Além disso, a fábrica, abrigando 50 mil centrífugas, que o Irã planeja construir teria capacidade para produzir urânio enriquecido suficiente para a confecção de até 25 bombas por ano. É significativo que também o Paquistão optasse pelo enriquecimento do urânio (em vez da geração de plutônio em um reator, um processo mais difícil de ser mantido sob sigilo) como a solução inicial para a obtenção da bomba. Se levar adiante o programa nuclear, mesmo que não produza a bomba, o Irã pode tornar-se uma potência nuclear “virtual”, capaz de fabricar armas no prazo de um ano após tomar essa decisão. E o regime teocrático do país é abertamente hostil a Israel. A perspectiva mais assustadora, contudo, não é a nuclearização de nações e sim a de grupos terroristas – graças ao roubo ou aquisição de material físsil adequado para uso militar nos países da antiga URSS, ou em Estados delinqüentes, como a Coréia do Norte. Durante a Guerra Fria, a União Soviética implantou um sistema rígido de proteger suas fronteiras externas e assegurar a estabilidade interna. Com isso, os materiais nucleares dispersos por toda a imensa rede de bases militares e centros de pesquisa estavam protegidos, ainda que não bem documentados. Quando houve a desintegração da URSS e a abertura das divisas, o governo russo defrontou-se com uma série de novos desafios – que iam desde uma multidão de cientistas nucleares desempregados até a tarefa monumental de cuidar de todo o seu estoque nuclear e impedir que este fosse roubado. Os EUA se ofereceram para ajudar a Rússia. Mas a desconfiança remanescente da Guerra Fria atrasou um acordo entre os dois países, e mesmo depois dos anos 1990 o esforço conjunto não contou com os necessários recursos financeiros. Desde 1991, o programa americano chamado Redução Cooperativa de Ameaças Nunn-Lugar vem apoiando os esforços para o controle e eliminação desses materiais, mas o ex-senador Sam Nunn, co-patrocinador da legislação juntamente com o senador Richard Lugar, avaliou no início de 2005 que até agora apenas “algo entre 25% e 50%” da tarefa de assegurar o controle sobre os materiais nucleares russos havia sido feita. Comprovou-se que pequenas quantidades foram adquiridas e vendidas clandestinamente (mapa nas páginas 42-43), mas, até onde se sabe, nenhum grupo não-estatal obteve a quantia mínima de material – cerca de 4 quilos de plutônio, ou 15 quilos de urânio enriquecido – necessária para a fabricação de uma bomba rudimentar. Dentre os vários cenários em que poderia ocorrer um ato de terrorismo nuclear, o mais plausível envolve o uso de uma “bomba suja”, ou seja, um explosivo convencional associado a material radiativo extraído de fontes médicas ou industriais. Os especialistas descrevem as bombas sujas como “armas de perturbação maciça”, devido ao pânico e à contaminação que provocariam. A descontaminação após um ataque desse tipo a uma grande cidade exigiria meses de trabalho, a um custo de dezenas de bilhões de dólares. As principais vítimas de uma bomba suja seriam as pessoas feridas ou mortas pela explosão inicial. Muito mais devastadora seria uma bomba terrorista fabricada com urânio enriquecido ou com plutônio roubados, e transportada por um veículo comum, como barco ou caminhão. A impossibilidade de detecção prévia de um ataque assim tira o sono de funcionários da defesa civil em todo o mundo, e levou as autoridades americanas a optarem pela guerra preventiva como a melhor defesa contra uma investida terrorista. Um ataque imprevisto sempre foi o pesadelo da era nuclear. A fim de se precaver contra uma investida soviética de surpresa, o Conselho de Segurança americano chegou a considerar um ataque preventivo a Moscou em 1954, pois na época alguns especialistas consideravam o arsenal americano suficientemente superior ao soviético para justificar tal risco. A proposta foi rejeitada pelo presidente Dwight D. Eisenhower. Na década de 1960, as idéias de uma investida preventiva foram substituídas pela crença no poder da dissuasão – a “certeza de destruição mútua” – como a estratégia para evitar um ataque soviético. Também visando proteger o país, o presidente Ronald Reagan propôs um sistema de defesa que ficaria conhecido como “Guerra nas Estrelas” – enfim instalado, numa versão restrita, no Alasca, em 2004. No entanto, ainda não existe nenhum sistema similar que possa interceptar armas clandestinas transportadas por aviões, navios ou caminhões. Após 60 anos de busca por um sistema ideal, nada foi encontrado capaz de impedir um ataque com armas que, mesmo em suas formas mais rudimentares, podem ser pequenas e portáteis – e imensamente destrutivas. Para Sam Nunn, é preciso que as nações nuclearizadas “reduzam de maneira visível sua dependência” em relação a tais armas, de modo a torná-las “menos relevantes” e, portanto, menos atraentes. Hoje, os países signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear estão discutindo outro acordo, pelo qual seria proibida a produção de plutônio ou urânio para fins militares, ao mesmo tempo que os estoques existentes seriam diluídos ou reciclados como combustível em reatores nucleares. Um programa semelhante vigora entre os EUA e a Rússia por intermédio de uma empresa americana, a Usec, que até agora já adquiriu dos russos 250 toneladas de material físsil militar diluído – quantidade suficiente para a fabricação de 10 mil ogivas atômicas – a fim de revendê-lo para empresas americanas que possuem reatores para a geração de energia elétrica. Iniciativas desse tipo são avanços na direção certa, mas elas não afastam as maiores ameaças que hoje enfrentamos, “o terrorismo catastrófico, o aumento da quantidade de países com arsenal nuclear e o crescente perigo de um lançamento nuclear acidental ou não autorizado”, disse Nunn. “Não tenho certeza de que entendemos bem o impacto de um ataque nuclear”, continuou Nunn. “Se uma bomba de 10 quilotons for detonada no centro de Manhattan em um dia normal de trabalho, ela poderia matar mais de meio milhão de pessoas. Dez quilotons, uma potência plausível para uma rústica bomba terrorista, é o equivalente a 10 mil toneladas de TNT. Para transportar essa carga de explosivos, seria preciso um trem de 100 vagões. Se fosse uma bomba atômica, bastaria a carroceria de um caminhão.” Niels Bohr e Robert Oppenheimer teriam plena consciência do dilema atual: o que fazer com a espada de dois gumes que eles nos deixaram, forjada em metais exóticos por uma reação nuclear que os cientistas descobriram em um dia de 1938 enquanto se empenhavam em entender o funcionamento do mundo. Na minha opinião, o conselho dos dois físicos ainda é válido: apenas um esforço conjunto internacional irá garantir a segurança dos materiais usados na fabricação de armas nucleares. Somente as negociações para a redução dos arsenais e a restrição do desenvolvimento de armas podem diminuir, a longo prazo, os riscos que todos estamos correndo. Era nisso que Bohr e Oppenheimer acreditavam, e foi isso o que Oppenheimer disse aos cientistas de Los Alamos em uma noite chuvosa, há 60 anos.