Neurocientista brasileiro
desenvolve uma tecnologia que abre a possibilidade de recuperar a visão e a
audição em humanos
por Juliana
Tiraboschi
O neurocientista brasileiro Miguel
Nicolelis não se cansa de surpreender. Em 2011, fez um macaco controlar um braço
robótico apenas com o pensamento, feito inédito na história da ciência e que
entrou na lista das tecnologias que irão mudar o mundo, elaborada pelo Instituto
de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Nesta semana, uma das ramificações da
revista britânica "Nature" publicou a nova e surpreendente pesquisa de
Nicolelis: ele e seus colegas Eric Thomson e Rafael Carra fizeram ratos "sentir"
a luz infravermelha, invisível para os mamíferos. Dessa forma, criaram um novo
sentido além dos cinco naturais: visão, audição, paladar, tato e olfato. Tão
importante quanto a descoberta são os novos caminhos abertos por ela. Fazer com
que uma parte do cérebro aprenda um novo sentido indica que é possível recuperar
capacidades perdidas, utilizando a mesma técnica. Para curar determinados tipos
de cegueira, bastaria religar os nervos ópticos em uma parte do córtex cerebral
que não estivesse avariada. O mesmo poderia ser feito com os demais
sentidos.
Professor de neurobiologia,
engenharia biomédica, psicologia e neurociência e codiretor do Centro de
Neuroengenharia da Universidade de Duke, nos EUA, e pesquisador do Instituto
Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra (INN), Nicolelis fala
na entrevista a seguir sobre esse estudo e projetos como o Andar de Novo, que
engloba uma série de pesquisas relacionadas à ligação entre cérebro e máquina e
ao uso da atividade elétrica produzida pelos neurônios para controlar
dispositivos robóticos como braços e pernas artificiais. Por trás desse plano
está o grande sonho do cientista: fazer um tetraplégico brasileiro voltar a
andar com a ajuda de um exoesqueleto e dar o pontapé inicial na Copa de
2014.
Istoé -Nessa nova pesquisa, vocês
fizeram com que os ratos sentissem a luz infravermelha como uma informação
táctil?
Miguel Nicolelis - Exatamente. Por
isso dizemos que é como se eles "tocassem" a luz. Induzimos os animais a
reconhecer uma luz invisível como se fosse uma sensação do
tato.
Istoé -E os animais demoraram
quanto tempo para aprender esse novo sentido?
Miguel Nicolelis - Cerca de 30
dias. E nós notamos que os ratos mudaram seu comportamento. Eles começaram a
fazer gestos com a cabeça que se parecem com movimentos de morcego, "escaneando"
o ambiente em busca da luz. Eles estavam em uma sala escura, não enxergavam a
luz, mas, toda vez que chegavam próximo dela, sentiam mais a sua intensidade
táctil. Assim, percebemos que eles desenvolveram uma nova sensação e uma
estratégia para processar esse estímulo.
Istoé -Vocês esperavam esse
resultado ou foi uma surpresa?
Miguel Nicolelis - Foi
surpreendente. Primeiro pela rapidez com que aconteceu a mudança e depois pela
forma como o animal usa esse sentido de uma maneira eficiente. Os ratos passaram
de movimentos aleatórios em busca de comida a quase 100% de
acerto.
Istoé -Esse resultado mostra que o
cérebro pode ser bem mais plástico do que se imagina?
Miguel Nicolelis - Sim, sem
dúvida. Ninguém esperaria que um pedaço de córtex táctil fosse capaz de criar
uma codificação de uma luz invisível. Essa foi uma grande demonstração de que,
mesmo durante a fase adulta da vida, o cérebro é capaz de criar um novo modelo
interno do mundo exterior, mesmo que seja de um sinal que o corpo nunca
experimentou.
Istoé -E esse novo modelo seria um
novo sentido?
Miguel Nicolelis - Isso mesmo. Não
temos um nome para isso, mas é como se tivéssemos criado uma mistura de visão e
tato, parecido com um fenômeno raro chamado sinestesia. Ele acontece com pessoas
que ouvem um tipo de som e enxergam determinadas cores, uma mistura de duas
modalidades de sentido.
Istoé -E vocês pretendem dar
continuidade a essa pesquisa?
Miguel Nicolelis - Sim, já temos
um macaco que consegue sentir luz infravermelha. Podíamos ter testado qualquer
outro tipo de onda eletromagnética: de rádio, raio X ou magnética propriamente
dita. Escolhemos a infravermelha porque ela não interfere com os registros
cerebrais. Agora estamos pensando em iniciar testes com ondas de
rádio.
Istoé -O sr. acha que essa técnica
poderá ser aplicada na criação de novos sentidos em humanos?
Miguel Nicolelis - Acho que sim.
Com os métodos não invasivos para estimular o cérebro que estão começando a
aparecer, é possível. Imagine poder aumentar os canais sensoriais dos seres
humanos. Iria ampliar bastante nossa capacidade de ver o mundo. Imagine poder
ter visão de raio X, sentir ondas de rádio, infravermelhas, campo magnético.
Teríamos uma capacidade de interpretar o mundo além dos limites do
corpo.
Istoé -Como a aplicação dessa
técnica pode ajudar na recuperação de visão e audição em pessoas cegas e surdas?
Há um potencial de cura dessas deficiências?
Miguel Nicolelis - Em pessoas que
tiveram lesões no córtex e ficaram cegas, por exemplo, sim, seria possível
reverter o quadro, porque você pode usar o córtex para outras coisas. Em teoria,
poderíamos tratar qualquer déficit sensorial com esse tipo de abordagem. É outra
linha de pesquisa que vai se abrir.
Istoé -O sr. acha que a ciência
está próxima disso?
Miguel Nicolelis - Esses trabalhos
começam a colocá-la próxima disso. É uma outra porta que ninguém tinha pensado
em usar até esse momento. Ainda não dá para estimar quão próximos estamos da
cura da cegueira ou da surdez por meio dessa técnica, mas as coisas estão
acontecendo muito rapidamente. E é um incentivo muito grande para os
pesquisadores saber que um pedaço de córtex não visual pode ser usado para se
transformar nesse estímulo. Agora temos outra alternativa de
pesquisa.
Istoé -Em que estágio está o
projeto Andar de Novo?
Miguel Nicolelis - Estamos
trabalhando dia e noite, aqui na Universidade de Duke, no Instituto de
Neurociências em Natal (RN) e na Universidade Técnica de Munique. Recebemos
pedidos de adesão de diversas instituições do Brasil e do resto do mundo que
querem colaborar. Agora estamos combinando todos os registros cerebrais que
criamos e construindo o exoesqueleto. Já temos um protótipo para macacos, vamos
testá-lo nos próximos quatro meses. O plano é simular uma lesão medular no
animal com uma anestesia que fará com que ele fique paralisado da cintura para
baixo por seis horas para testar o equipamento.
Istoé -Está mantido seu plano de
levar um tetraplégico a dar o pontapé inicial na Copa de 2014?
Miguel Nicolelis - Sim,
cientificamente estamos em dia com a pesquisa. Estamos começando o processo de
selecionar pacientes no Brasil e montar a equipe clínica. O projeto já é
conhecido no mundo inteiro. Para a área de neurociências é como ir para a Lua,
como um pouso em Marte.
Istoé -E como anda o projeto da
Cidade do Cérebro, que vai abrigar o Instituto de Neurociências e uma escola de
ciências?
Miguel Nicolelis - Estamos
esperando a Universidade Federal do Rio Grande do Norte cumprir a promessa de
terminar o campus no prazo. O projeto está atrasado em vários anos. É uma obra
muito grande. A parte de alvenaria dos dois prédios está pronta, agora faltam as
obras de infraestrutura. Esperamos que eles sejam entregues no ano que vem para
podermos iniciar a nossa escola em período integral para três mil alunos e levar
o Instituto de Neurociências para lá. Gostaríamos de inaugurá-lo antes da
Copa.
Istoé -Como vai funcionar essa
escola?
Miguel Nicolelis - Será a primeira
instituição de ensino que vai começar no pré-natal da mãe. Nós já temos um
programa de pré-natal há cinco anos na cidade de Macaíba (RN), onde a
mortalidade materna era de 90 óbitos a cada 100 mil partos. Estamos avaliando os
números, mas reduzimos dramaticamente esse índice, e nosso trabalho virou
referência para o Ministério da Saúde. Essas são as mães dos nossos futuros
alunos. A fase crucial de formação do cérebro é no período pré-natal. Ao longo
desses anos fomos introduzindo técnicas para que os bebês nasçam com seu
potencial neurobiológico intacto. Quando a escola abrir, essas crianças terão um
período de currículo oficial e um dedicado à educação científica. Isso
acontecerá desde o berçário até o final do ensino médio.
Istoé -Há três anos o sr. deu uma
entrevista criticando a falta de incentivo oficial a esses projetos. A situação
continua a mesma?
Miguel Nicolelis - Continua muito
parecida. O governo do Rio Grande do Norte não dá muita relevância para esse
tipo de investimento em educação científica. Mas já nos conformamos com isso, e
os recursos do governo federal estão sendo suficientes.
Istoé -Em 2011, o sr. rompeu com o
cofundador do Instituto de Neurociências Sidarta Ribeiro, que deixou o projeto
junto com outros pesquisadores da UFRN. Como está a situação
hoje?
Miguel Nicolelis - O que aconteceu
é que essas dez pessoas que saíram do INN não aceitavam as normas impostas pelo
instituto e pelo governo federal. Em qualquer lugar, você tem que seguir regras.
Por exemplo, você tem que esperar o fabricante vir instalar um equipamento – se
abrir antes, perde a garantia –, tem que aprovar protocolos, as pessoas que
acessam o instituto têm de ser identificadas e existem questões de segurança em
relação à propriedade intelectual.
Istoé -Uma das reclamações do
grupo que se desligou girava em torno da dificuldade de acesso de pessoal da
UFRN ao instituto.
Miguel Nicolelis - Imagina... Eles
tinham uma lista de 90 nomes que nunca se materializou. A média de presença de
gente da universidade era de apenas 12 pessoas por dia. Quando percebemos que o
conceito deles não batia com o nosso, para nós foi muito tranquilo que eles
saíssem. Ficamos surpresos com o estardalhaço que isso gerou. E agora, quase
dois anos depois, todas as reivindicações que eles fizeram, como a retirada de
equipamentos, foram negadas pelas agências reguladoras. A atitude deles
demonstrou imaturidade e falta de seriedade. Essas coisas acontecem em todo
lugar e não viram notícia de jornal.
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